Privatização deslancha investimentos em saneamento. O que vem por aí.

Estação de Tratamento do Guandu, em Nova Iguaçu (RJ): leilões após o marco do saneamento já geraram compromissos de investimentos de R$ 46,7 bilhões.| Foto: Divulgação/Cedae


Dois anos após a entrada em vigor do novo marco legal do saneamento básico (Lei 14.026/2020), que estimulou a privatização desse serviço, os investimentos privados no setor começam a deslanchar, embora uma série de desafios ainda persista.

Até 2024, estão previstos 28 novos leilões de saneamento em 17 estados, segundo levantamento da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon), com base em dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No plano, estão projetos em estados com baixos índices de cobertura de serviços, como Ceará, Paraíba e Rondônia.

O investimento total estimado a ser contratado nos próximos dois anos é de R$ 24 bilhões, com 16,3 milhões de pessoas potencialmente beneficiadas.

De 2020 até o último mês de abril, foram realizados 16 leilões que abrangeram 217 municípios e alcançaram 20 milhões de pessoas. Ao todo, os contratos preveem investimentos de R$ 46,7 bilhões, além do pagamento de R$ 29,5 bilhões em outorgas.

Entre as operações realizadas estão a licitação de quatro blocos da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), três blocos de municípios de Alagoas e a concessão plena dos serviços do Amapá.

Uma das metas estabelecidas pelo novo marco é a universalização dos serviços de saneamento até 2033, com atendimento mínimo de 99% da população com fornecimento de água potável e de acesso a coleta e tratamento de esgoto a pelo menos 90% da população.

Para isso, a lei estabelece o aumento da concorrência pelo mercado, com a vedação de novos contratos de programa; maior segurança jurídica para a privatização de estatais do setor; e o estímulo à prestação regionalizada dos serviços, por meio de contratos com blocos de municípios.

Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que a ausência de água tratada ainda atinge quase 35 milhões de pessoas, e que cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto. Além disso, somente 50% do volume coletado é tratado. Segundo o Instituto Trata Brasil, o equivalente a 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento é despejado na natureza todos os dias.

No Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) estimou em R$ 507 bilhões o investimento necessário para se atingir a universalização dos serviços até 2033, considerando valores de dezembro de 2020. A consultoria KPMG, por sua vez, calculou, em um estudo de julho de 2020, a necessidade de R$ 993 bilhões.

Universalização traz desafios em municípios menores e mais pobres

Para o economista Eric Brasil, sócio da Tendências Consultoria, um dos maiores desafios nos próximos anos será garantir que municípios pequenos, pobres e com baixo atendimento de água e esgoto sejam capazes de articular uma prestação de serviços de saneamento capaz de atingir as metas de universalização.

Um levantamento da consultoria feito a partir de dados da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que quanto mais pobre e com menor cobertura de água e esgoto, maior é a probabilidade de a cidade estar com o contrato de prestação de serviços de saneamento irregular.

São municípios que, até 31 de dezembro de 2021, não conseguiram comprovar capacidade econômico-financeira para o atingimento das metas. Das 5.570 cidades do país, 1.141 (20,5%) integram o grupo, a maior parte em estados do Norte e Nordeste.

A proporção de contratos irregulares cresce nos municípios que têm menor renda per capita, conforme o estudo. Nas cidades com rendimento médio superior a R$ 500, o porcentual de regularidade chega a 88%. Por outro lado, naquelas em que o ganho é inferior a R$ 200, o índice cai para 30,7%.

Considerando o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), o quadro se repete. Nas localidades com IDHM considerado muito alto, 95,6% dos contratos são total ou parcialmente regulares. Nos que têm IDHM muito baixo, apenas 26,6% dos prestadores de serviço se enquadram nas exigências.

O porte também está relacionado aos indicadores. Nos municípios com população acima de 200 mil habitantes, o porcentual de contratos regulares é de 83,84%, índice que cai para 78,44% naqueles que tem entre 50 mil e 200 mil moradores. Nas cidades com menos de 50 mil residentes, o porcentual é de 70,05%.

O economista da Tendências explica que a situação ocorre porque cidades menores exigem investimento maior exatamente por ter estrutura de saneamento mais precário. “São municípios menos atrativos para o investimento privado, com menor capacidade de prestação do serviço pelo próprio município e, em princípio, parece que as estatais também não têm interesse neles”, diz.

De acordo com estudo realizado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, há quase 30 milhões de brasileiros nos municípios que estão com contratos irregulares, onde o atendimento de água e esgoto estão bem distantes da média nacional. A população com acesso à água nesses municípios teria que passar de 64,4% para 99% e a cobertura de esgoto teria que subir de 29,1% para 90% até 2033 para se alcançar a universalização prevista na legislação.

“Dois anos após a aprovação do marco, é possível avaliar uma mudança de cenário, principalmente com os investimentos garantidos por meio dos leilões, concessões e parcerias no setor. Entretanto, ainda é necessária a busca de soluções para municípios com contratos irregulares, cujos índices de saneamento são bastante precários”, diz Luana Siewert Pretto, presidente-executiva do Trata Brasil.

Por Célio Yano da Gazeta do Povo.